A morte do trigo


O viajante viu uma bifurcação na pequena estrada de terra pela qual havia caminhado durante todo o dia. Estava chegando a noite e ele precisava achar um lugar para dormir. Ao longe, viu o que parecia ser uma aldeia no final da es-trada que virava à direita, algumas luzes já acesas. Ajeitou a mochila nas costas e o chapéu na cabeça, e tomou aquela direção.Andava nas margens de um trigal e esse trigal havia sido ceifado há pouco tempo, provavelmente naquela manhã mesmo. Desprendia um cheiro forte de mato e terra, um perfume que agradou ao homem. Aquele era o cheiro do campo, o cheiro da terra, que tanto buscava em sua jornada. Provavelmente o povo da aldeia agora se ocupava em estocar o trigo colhido, mas certamente lhe ofereceriam uma cama.Quando caiu a noite, ele ainda estava longe da aldeia. O ruído seco de seus passos na terra batida acompanhava os primeiros grilos que começavam a cantar. Era uma noite de lua minguante, não estava muito claro. Quase tudo era sombra ao seu redor. Foi então que reparou numa sombra que se movia. Pa--recia que tinha alguém sentado na beira do trigal.Chegou mais perto mas, mesmo assim, não conseguia definir a sombra. Ora parecia ser um homem sentado, ora era apenas um vulto sem forma, e por vezes ficava transparente. Não teve medo, teve antes curiosidade.E se aproximou.A estranha figura estava comendo. Comia frutas e pães. Bebia, também. Leite e cerveja. Olhou para o viajante quando ele se aproximou.– Boa noite, viajante. Quer se juntar a mim e cear?Sua voz era como o vento que soprava em seus ouvidos.– Não, obrigado – respondeu, receoso – Porque come aqui, ao lado do trigal? A noite está fria.– Aqui é meu lugar. Hoje, fui ceifado. Eu morri. Sou o espírito do trigo.– Isso é triste... mas você me parece alegre!– E estou alegre! Veja quantas oferendas os camponeses deixaram em minha honra! – apontou para a comida e a bebida – E depois, eu morro como trigo e vou renascer como pão. E o pão alimenta aqueles que me deram a vida quando me plantaram na terra e cuidaram de mim. Nosso relacionamento é baseado no dar e receber. Veja como não se esquecem de me agradecer, veja quanta comida! Posso até passar mal! Vamos, junte-se a mim!O viajante acabou aceitando. Como se recusar a compartilhar da companhia de um espírito da natureza? Comeu um pedaço de bolo e algumas amoras pretas que tingiram as pontas de seus dedos de uma cor arroxeada. Depois bebeu do leite fresco e também da cerveja. Pensou no tanto de alimentos que já havia consumido e que jamais havia honrado. Era um homem da cidade. Lá, onde existia a lei do concreto, todos se esqueciam dos espíritos com os quais interagiam todo o tempo. Se esqueciam até de seus próprios espíritos.– Viajante – falou o espírito do trigo – Coma o quanto quiser. Depois descanse e recupere suas forças. E de manhã, ao seguir sua viagem, siga o caminho onde brilha o Sol. E não se esqueça de agradecer ao espírito do Sol pelo calor e pela luz confortantes. E o deus Lugh te abençoará em sua jornada.O viajante agradeceu e olhou adiante, para a aldeia que almejava chegar. Desistiu e resolveu passar a noite ali mesmo, com o espírito do trigo, com a lua, com as estrelas e com as corujas que piavam.

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